O jornal The New York Times dedicou uma extensa matéria a Shakira no últim dia 5. O texto destaca o caráter humanitário de Shakira, bem como as grandes mudanças sofrias por sua carreira. Confira abaixo o texto na íntegra, traduzido pela equipe do Portal IG. Em um vôo entre Miami e San Salvador no último mês de outubro, Shakira refletia com os olhos grudados em seu MacBook. Ela preparava o discurso sobre desenvolvimento infantil que faria na manha seguinte, na Cúpula Ibero-Americana – evento que reuniria grande parte dos chefes de estado da América Latina, além do Primeiro Ministro e rei da Espanha, do primeiro ministro de Portugal e de um seleto grupo de dignitários de escalões inferiores. Aquele não era um evento comum para Shakira Mebarak Ripoll, nascida na cidade colombiana de Barranquilla. Entretanto, a cantora tem este outro lado. Dois anos atrás, juntamente com Antonio de La Rua, seu namorado de longa data, além de alguns amigos do casal, Shakira teve a idéia de criar a ALAS (“asas” em espanhol): uma associação de cantores ibero-americanos que faria uso do poder da fama para levantar a bandeira do desenvolvimento infantil. Desde então, a ALAS já reuniu os principais pop stars de países de língua espanhola e portuguesa, realizou shows gigantescos no México e na Argentina, conseguiu o apoio filantrópico de algumas das famílias mais abastadas da América Latina e chamou a atenção de um número expressivo de chefes de estado. Agora, com os olhos fitados na tela de seu Mac neste vôo com destino a San Salvador, talvez ela estivesse próxima de seu grande momento de avanço político. “Já está longo demais”, disse ela, sorrindo de forma resignada ao digitar seu discurso. “E eu ainda tenho tanto a dizer”, ela concluiu, continuando a digitar. No fundo do avião de oito lugares, o mega-star espanhol Alejandro Sanz fazia anotações de seu discurso em um monte de papéis espalhados, se recuperando de uma forte gripe ao lado de sua namorada. Sua atitude relaxada contrastava com o nervosismo de Shakira. Ela se virou para olhar para o cantor. “Estou com medo”, disse ela em espanhol, com o rosto imóvel por um momento. “E por quê?”, perguntou Sanz. “Porque isso é importante demais”. O pequeno grupo – formado por um assessor de imprensa, um empresário, uma assistente e a cantora, já sem palavras – ficou mudo. Shakira voltou a digitar sua palestra ao sobrevoarmos Cuba. A filantropia entre roqueiros e celebridades em geral não é mais novidade. Porém, o que Shakira e a Fundação ALAS estavam tentando fazer era completamente novo. Com o foco na nutrição, educação e assistência médica na primeira infância, a fundação trabalha em uma escala muito além do alcance de uma entidade filantrópica privada. O trabalho requer o esforço contínuo do estado e não pode ser resolvido simplesmente com verbas concedidas pelos países ricos. O truque é pegar uma celebridade do mundo pop, juntá-la a um grande empreendimento e alterar para sempre a maneira como governos latino-americanos ajudam a cuidar de crianças e carentes. O que a jovem de cabelos dourados, com os olhos grudados no computador, estava tentando fazer era um pedido de grande porte – mas nem por isso seria razoável subestimar alguém como ela. Mais tarde, dirigindo rapidamente um carro SUV pelas estradas esburacadas de San Salvador, Shakira me contou que iria insistir para firmar compromissos de ações e para estabelecer um grupo de trabalho voltado para o desenvolvimento infantil na Cúpula Ibero-Americana deste ano. “Queremos que cada presidente saia dali com um compromisso firme. Queremos ter certeza que eles voltaram para seus países tendo em mente aquelas crianças de zero a seis anos de idade, com uma compreensão plena do significado de iniciativas voltadas para o desenvolvimento da primeira infância”.
Shakira visitou Bangladesh em 2007 como representante da UNICEF |
O comitê de trabalho da reunião iria, com a ajuda do braço de pesquisa da ALAS em Nova York e da sede de caráter mais político da fundação em Bogotá, estabelecer e definir melhores práticas e ajudar os estados a desenvolverem projetos pilotos em pelo menos cinco países. Shakira explicou: “A idéia é que este comitê se reúna na Cúpula de Portugal, em 2009, para trazer informações e analisar as conquistas – ou, pelo menos, apresentar um plano muito concreto para realizações futuras, que devem ser postas em prática antes da próxima reunião, em 2010”. Seja em particular ou abertamente, Shakira recorre, com freqüência, aos jargões de especialistas em empreendimento social. “Cresci no mundo emergente, cresci presenciando a injustiça”, ela me contou. “Cresci durante uma severa crise social: a luta entre a esquerda e a direita e, no meio de tudo, pessoas sendo atingidas pelo tiroteio. Vi milhões de pessoas desalojadas na Colômbia. Porém, já percebi também que, em países como o meu, quando uma criança nasce pobre ela vai morrer pobre – a menos que tenha uma oportunidade. Tal oportunidade é a educação. É dessa mão altruísta que eles precisam. A América Latina é um continente jovem, maleável e flexível. Ainda podemos mudar”. “Vontade de pedra” Na noite em que cheguei a El Salvador, discuti as aspirações da ALAS com Luis Alberto Moreno, presidente do Banco Interamericano de Desenvolvimento, que tem aconselhado Shakira. Ex-embaixador da Colômbia nos EUA, Moreno é um astuto observador da política e dos políticos latino-americanos. Nós dois tínhamos idade suficiente para nos lembrarmos da guerra civil em El Salvador e para pensar no país sob aquela situação. Porém, como destacou Moreno, as gerações mudaram: no caso da nossa, primeiramente nos posicionávamos para depois buscarmos soluções. “Esta não é a forma que as novas gerações – que incluem Shakira – abordam os problemas”. Essa geração mais jovem é mais prática, e também mais global. “O que acho que Shakira e todo aquele grupo fizeram foi atingir em uma nova geração de latino americanos que, através da música, se tornou global. É a geração que ela representa”. Com sua origem libanesa e canções em inglês – incluindo o grande sucesso bilíngüe “Hips Don’t Lie”, em parceria com o haitiano americano Wyclef Jean, por exemplo – Shakira mostrou como um artista latino pode ser universal. Ao mesmo tempo, ela tenta manter-se firme às raízes latino americanas. “Quando você compara tudo o que todo mundo já fez – como o Bono, dentro outros – em relação à África, quase sempre foram artistas dos países do G-8 com os olhos voltados para a África”, disse Moreno. No cada da ALAS, “artistas latinos estão voltados para a América Latina, e acho que isso é algo único. Acho também que é algo extremamente poderoso, pois as relações deles com a região acabam sendo mais profundas”. De imediato, o visual feminino de Shakira é limitador e crítico para seu poder. Em um ensaio escrito quando a cantora tinha 22 anos, o romancista Gabriel Garcia Marquez chama a atenção não somente para a “vontade de pedra” de Shakira, mas também para uma “sensualidade inocente que parece ter sido inventada por ela mesma”. Ela chegou onde está através de estágios: criança prodígio, gravou dois álbuns dos quais não gostou, atuou em uma novela de TV e se tornou pop star – atingindo principalmente um público formado por meninas. Com vinte e poucos anos, ela mudou novamente: clareou os cabelos e tornou seus ritmos mais aventureiros. Esta personalidade está presente no álbum duplo Oral Fixation, com o qual ela conseguiu chegar ao ponto onde poderia aspirar influenciar políticas públicas de toda uma nação. Toque de glamour A reunião presidencial pareceu demandar um leve toque de glamour e, para seu discurso, Shakira estava usando um vestido cinza claro e o cabelo preso. Ao adentrar a sala, diplomatas discretamente tiravam fotos, sem se levantar da cadeira, enquanto o presidente de El Salvador dava as boas vindas à cantora – e também a Alejandro Sanz e a Fher, vocalista da banda mexicana Maná. Shakira, então, iniciou sua fala: “Estamos aqui para dar início à criação de uma grande aliança entre o setor público e a sociedade civil, com o intuito de proteger o grupo mais frágil de nossa população: as crianças”. Ela falou sobre os “grupos regionais de trabalho”, que seriam estabelecidos como resultado daquela reunião, descrevendo sua estrutura e objetivos, e em seguida concluiu: “Vamos encontrar forças para defender os pequenos nesses momentos difíceis”.
Ao lado de Bono e The Edge, do U2, Shakira cumprimenta o presidente Obama |
De volta à SUV e seguindo por uma estrada estreita, ladeados por policiais em motocicletas e um helicóptero sobre nossas cabeças, voltamos ao jato que logo estava sobrevoando San Salvador, nos conduzindo ao nordeste e ao Caribe. Shakira me perguntou se eu tinha conseguido ver se os olhos de Álvaro Uribe, presidente da Colômbia, ficaram marejados quando ele fez seu discurso durante o encontro. Eu tinha tido a mesma impressão, mas não consegui enxergar bem, embora tivesse certeza que sua voz estivesse alterada. O encontro em outubro em El Salvador foi o ponto alto do projeto, mas no início deste ano havia questões sobre a real representatividade do evento. Teria o mesmo sido apenas uma oportunidade de tirar fotos especiais? Algumas questões internas preocupavam os integrantes da ALAS: em um curto período, a fundação já havia passado por dois diretores executivos e, ao final da reunião de El Salvador, já estava no terceiro. Esse fato oferecia uma brecha para os inimigos de Shakira. Ela nunca havia tomado uma posição política contra ou a favor da guerra opressiva do presidente Uribe – popular, mas bastante sangrenta – nas décadas de insurgências das Forças Revolucionárias Colombianas (FARC). A influente colunista colombiana Maria Isabel Rueda escreveu no periódico El Tiempo, em 01 de fevereiro, que o país tinha dois pólos políticos: o cantor Juanes, que apoiava abertamente o presidente Uribe e geralmente tomava partido político (e cuja música demonstrava maior preocupação com o país); e Shakira, que Rueda taxou de diplomática e pouco propensa a tomar uma posição política firme (contra ou a favor de Uribe, por exemplo). Rueda dava a entender que, se Shakira se mantinha acima de questões políticas, porque então almejava reivindicar poder político? Quem a teria elegido? Talento precoceSão inúmeras as esquisitices envolvidas nesta estória: a menina de origem libanesa cristã, educada por freiras em Barranquilla, se tornou símbolo sexual internacional; a ativista política que se mantém fora da política. É trabalho de seu namorado e conselheiro de todas as horas, de La Rua, suavizar tais contradições e realizar a alquimia da política pop. Ele afirmou que o desenvolvimento de crianças nos primeiros anos de vida era um objetivo tão livre de culpas que, uma vez dentro do discurso político, era impossível se opor a ele. A canção “Hips Don’t Lie” causa um orgulho especial em Shakira quando ela canta: “Em Barranquilla se baila asi”- “Em Barranquilla se dança assim”. A cidade portuária do Caribe, famosa na Colômbia por sua miscigenação étnica (principalmente de bascos e árabes), é onde a história de Shakira começou. A filha única se mostrou uma criança intelectual e artisticamente precoce: lendo, escrevendo, cantando e dançando. Seu pai convenceu as freiras do Colegio La Ensenanza a admiti-la mais cedo e, quando mais tarde não conseguiu pagar as mensalidades escolares, ele disse às freiras: “Não se preocupem com o dinheiro. Shakira vai ficar famosa e eu vou pagar”. Uma das obrigações dos alunos do Colegio La Ensenanza era ajudar crianças carentes a ler e a escrever. Isso levou Shakira a La Playa, bairro formado basicamente por cortiços, próximo a um brejo onde o Rio Magdalena encontra o mar. Shakira teve a idéia de ajudar as crianças de La Playa uma vez que havia conquistado a fortuna e fama internacional que seu pai havia previsto. Dois dias depois de seu aniversário de 32 anos, lá estava ela para inaugurar o que um integrante de seu entourage chamou de “obra-prima”: uma escola do maternal ao ensino secundário com arquitetura minimalista em concreto aparente, dotada de estúdio de dança, um lindo laguinho e um campo de futebol de grama artificial. O que Shakira fez ali é mais simples do que a ALAS, com suas manobras políticas. Ela já construiu cinco escolas desde 2004. As escolas são reais, com um número fixo de crianças recebendo boa educação em um ambiente seguro. Shakira andava para cima e para baixo pelos corredores, acompanhada de de La Rua, de seus pais e de Maria Emma Mejia, a chefe de sua fundação pessoal e principal conselheira. Ela era só seriedade, fazendo perguntas e examinando cada cantinho. Quando eu disse a ela como a escola tinha ficado linda, ela respondeu, com um sorriso: “É bom mesmo. Paguei bastante por ela”. Não havia nenhuma amargura naquelas palavras, tampouco alegrias. Shakira era uma mistura de encantamento, controle e ansiedade. Era difícil dizer se ela realmente encontrava prazer em suas conquistas. Depois de uma sessão de fotos, ela pediu para ser deixada a sós antes de dar início a uma nova rodada de entrevistas. O sol estava se pondo. Por um momento ela se sentou no topo da escada olhando por cima dos telhados enferrujados de La Playa, ao nordeste, em direção ao dique do Rio Madalena. Quando o sol se pôs, ela entrou, em passos largos e saltos altos, em uma sala lotada de jornalistas, exibindo um sorriso convincente… e concedeu entrevistas noite adentro. Fonte: Portal Shakira e IG musica